FAR CRY



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FAR CRY

Pariah dogs and wandering madmen
Barking at strangers and speaking in tongues
The ebb and flow of tidal fortune
Electrical changes are charging up the young

It's a far cry from the world we thought we'd inherit
It's a far cry from the way we thought we'd share it
You can almost feel the current flowing
You can almost see the circuits blowing

One day I feel I'm on top of the world
And the next it's falling in on me
I can get back on
I can get back on
One day I feel I'm ahead of the wheel
And the next it's rolling over me
I can get back on
I can get back on


Whirlwind life of faith and betrayal
Rise in anger, fall back and repeat
Slow degrees on the dark horizon
Full moon rising, lays silver at your feet

You can almost see the circle growing
You can almost feel the planet glowing

One day I fly through a crack in the sky
And the next it's falling in on me
I can get back on
I can get back on
MUITO DISTANTE

Cães párias e loucos errantes
Latindo para estranhos e falando em línguas
Os fluxos e refluxos das marés do destino
Alterações elétricas estão agitando os jovens

É muito distante do mundo que pensávamos herdar
É muito distante do caminho que pensávamos compartilhar
Você quase pode sentir a corrente fluindo
Você quase pode ver os circuitos queimando

Um dia sinto que estou no topo do mundo
E no outro ele desaba sobre mim
Eu posso voltar atrás
Eu posso voltar atrás
Um dia sinto que estou à frente da roda
E no outro ela rola sobre mim
Eu posso voltar atrás
Eu posso voltar atrás


Vida turbilhão de fé e traição
Se ergue com raiva, retrocede e repete
Lentamente no horizonte escuro
Lua cheia subindo, colocando prata aos seus pés

Você quase pode ver o círculo crescendo
Você quase pode sentir o planeta brilhando

Um dia voo por uma fenda no céu
E no outro ele desaba sobre mim
Eu posso voltar atrás
Eu posso voltar atrás


Música por Geddy Lee e Alex Lifeson. Letra por Neil Peart


O mundo não se tornou o lugar que esperávamos

Snakes & Arrows tem início com "Far Cry". Lançada como o primeiro single do álbum no dia 12 de março de 2007, a canção conseguiu atingir a décima segunda posição no Hot Mainstream Rock Tracks da Billboard.

Após cinco longos anos desde Vapor Trails, o Rush ressurgia com um novo e aguardado trabalho de composições inéditas. Com "Far Cry", a banda apresenta de imediato algumas lembranças musicais do seu próprio passado, graças às influências entusiasmadas do jovem produtor norte-americano e ganhador do Grammy Nick Raskulinecz, trazendo inclusive a utilização de amplificadores e instrumentos antigos imortalizados em gravações clássicas do grupo. Um desses elementos é o Moog Taurus Pedal, bastante explorado nas décadas de 1970 e 1980 e marcante em canções como "Tom Sawyer", do antológico álbum Moving Pictures (1981), explorados agora com a sutileza de toques precisos.

A sessão inicial de "Far Cry" explode uma sonoridade muito pesada e definida, com compassos diferentes intercalados que remetem ao Rush clássico. O acorde inicial extraído na guitarra retorna décadas por sua similaridade a Hemispheres, trecho capturado com alguns dos mesmos equipamentos utilizados nas gravações de 1978. Um agradável groove de baixo e bateria atrai a atenção nos versos, esses que são marcados por arranjos profundos e atmosféricos na guitarra com toques sutis de wah wah, aliados a backing vocals poderosos. Toda a tensão contrasta maravilhosamente na ponte que conduz aos refrões, onde falsetes encorpam a reflexão apresentada pelos vocais que, ao lado de uma poderosa sequencia de notas blues, se mostram magistrais partindo naturalmente de notas graves às agudas. Todo segmento acompanha camadas de vocalizações de muita profundidade.

A estrutura da canção é repetida com poucas variações até encontrar novamente sua introdução, levando o ouvinte a um solo de guitarra hipnotizante construído simplesmente com bends, de forma simples e objetiva. Por fim, o golpe final é dado com um solo técnico de bateria, onde surdos e tons são surrados num descarregar de sentimentos que definem as sensações de toda canção.

Alex Lifeson e Geddy trabalharam na composição musical de "Far Cry" numa ocasião em que Neil estava em viagem durante as gravações. Geddy se deparou com uma letra que o baterista havia deixado para trás e descobriu que ela se encaixava perfeitamente na construção que haviam criado de maneira despretensiosa.

"O dia de 'Far Cry' foi muito bom", lembra Geddy. "Havíamos acabado de dar uma parada para o verão voltando no outono, e eu e Al estávamos empolgados para começar a compor novamente. Então entramos no estúdio e tivemos essa canção incrível. Foi despretensioso e muito divertido. Em seguida, Alex foi dormir no sofá e peguei aqueles fragmentos para brincar. Ao mesmo tempo, Neil havia deixado uma letra que adoramos. Ela estava certinha, adoramos o sentimento que trazia. Parecia combinar perfeitamente com a jam que havíamos acabado de fazer. Foi uma daquelas canções mágicas que acontecem. Meu amigo Ben Mink tem essa frase: 'Tudo o que você precisa de verdade são de seis bons minutos', e essa jam foi um exemplo disso".

"Foi quase como se já soubéssemos a canção quando compomos", diz Alex. "Apenas tocamos, e foi muito legal. Esse tipo de coisa não acontece com frequência. Comemoramos muito, pois é uma satisfação quando acontece algo assim".

Liricamente, Snakes & Arrows soa como uma resposta secular de Neil Peart sobre a crescente onda de religiosidade e fundamentalismo que mudou a geopolítica no planeta, após a queda da bipolaridade histórica da Guerra Fria. Grande parte das canções do disco abordam o conflito entre o humanismo outrora ascendente no Ocidente moderno e a popularidade crescente da fé religiosa. Esse questionamento de conflito, oposição e seus desdobramentos já fora abordado pelo músico em diferentes escalas, como em "Subdivisions", de Signals (1982), "Territories", de Power Windows (1985), "Alien Shore", de Counterparts (1993), "Half The World", de Test For Echo (1996) e "Peaceable Kingdom", de Vapor Trails (2002).

Peart, como um ávido motociclista, despertou para essa abordagem ao observar nas suas viagens a predominância de outdoors religiosos ao longo das estradas, o que tornava a presença do cristianismo sempre palpável. "Observar o cristianismo contrastando com o poder das religiões fundamentalistas em todo o mundo (e em suas diferentes formas) teve um grande efeito sobre mim".

Essas observações levaram o músico a pensar na modernidade secular e nos sistemas de crenças religiosas, posicionamentos que nunca chegaram a uma conclusão decisiva em todo o globo. "Você até tenta colocar sua maneira de ver o mundo num tipo de congruência com outras pessoas, mas isso é difícil para mim", admite. "O que quero dizer é que vejo o mundo de uma maneira que entendo ser perfeitamente óbvia e racional, mas quando olho ao redor e percebo como as pessoas pensam e se comportam, expressando-se em sinais de igrejas, penso: Bem, realmente não faço parte desse clube".

É interessante perceber que o "clube" ao qual Peart se refere esteve voltado para si mesmo durante um longo período, com as instituições tradicionais relutando em se adaptarem ou cederem espaço para inovações filosóficas, humanísticas, científicas e ideológicas. Para um pensador como o baterista, observar atualmente religiões encorajadas, revitalizadas e destacadas desperta atenção, principalmente a partir dos flagrantes de sua influência contemporânea na política e em conflitos civis e militares em várias partes do mundo, algo que lhe parece francamente regressivo. Dessa forma, um aspecto que se destaca em Snakes & Arrows é sua atitude defensiva - um sentimento de risco de ser ferido por um ataque inesperado.

De maneira geral, "Far Cry" aborda a surpreendente e preocupante inclinação que o mundo tomou ao longo dos últimos anos. Aproximando-se da clássica "A Farewell to Kings", faixa-título do álbum de 1977, Peart nota a conjuntura a partir do olhar de sua própria geração, esta que viveu movimentos culturais significativos nas décadas de 1960 e 1970 clamando não somente por transformações sociais, mas também por respeito à diversidade, meio ambiente e à negação de padrões. Porém, observando o presente, é notável que ainda nos apresentemos muito distantes de tais anseios.

O letrista descreve o indivíduo questionador que se vê em meio ao turbilhão ideias vazias, de pregadores e de jovens apanhados em murmúrios religiosos, além dos conflitos e posicionamentos distantes da razão. Não se trata de uma crítica aberta às religiões em si, as quais o letrista inclusive admira em seus bons elementos conforme retratado na canção "Totem", de Test For Echo, mas à maneira na qual as pessoas se apropriam das mesmas. Mesmo com todas as predisposições complicadas das relações humanas, tais circunstâncias mostram que o mundo se tornou um lugar muito diferente daquele que a geração anterior acreditava que conseguiria deixar para seus descendentes - com maior estabilidade e compreensão. Trata-se de uma reflexão sobre o sonho de uma realidade mais igualitária e segura, porém que mostra o desapontamento com as expectativas não cumpridas e com as responsabilidades que deixamos escapar para garantir o bem-estar das futuras gerações.

Mesmo com todos os prognósticos negativos, "Far Cry" traz implícita a sempre existente possibilidade de melhorarmos. A partir da aceitação racional da instabilidade e imprevisibilidade da vida, tema também já visitado pelo trio em obras anteriores como Roll The Bones, a canção não se apoia numa tônica pessimista - mas oferece um sinal de esperança. Geddy, Alex e Neil trazem uma mensagem inspiradora para os ouvintes, incentivando a iniciativa em prol das mudanças necessárias e utilizando a percepção crítica que se aproxima da razoabilidade e se afasta do egoísmo, incompreensão e intolerância como bases essenciais. A escolha final, mesmo que atualmente tão longínqua e suplantada, ainda cabe aos próprios indivíduos.

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